segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Pessoas cegas contam como vivenciam blecautes e falam sobre sua relação com a luz e a eletricidade - por Anna Azevedo

Quando menino, Xiko Gonçalves conseguia enxergar fontes luminosas brilhantes. Mas não tardou ficar completamente cego. Da percepção do brilho, a que mais o seduzia
era quando seus olhos - sempre em movimentos frenéticos, incontroláveis - cruzavam com algum outro olhar. "Eu ficava fascinado com aquele brilho do olho. Tinha vontade
de lamber para ter certeza de que era realmente carne. Não entendia como uma carne podia emitir tanta luz."
Outro atributo humano que encanta este analista de sistemas de 55 anos é a capacidade de emitir e de criar sons. E foi justamente a ausência dos sons habituais no
bairro de Botafogo que o fez perceber que havia algo de estranho naquela noite do dia 10 de novembro de 2009.
"As ruas tinham perdido a vida. Senti-me como um dos cegos que caminham pela cidade devastada imaginada por José Saramago no livro `Ensaio sobre a cegueira'."
A pane elétrica não fora sentida por ele em sua representação mais clássica, a falta de luz. Mas sim pela ausência dos ruídos do bairro: carros, buzinas, vozes
vindas de todos os cantos, bares cheios.
"Só soube que era um apagão porque escutei os comentários. O som é muito mais importante do que a luz. E num mundo cada dia mais ruidoso, nós cegos muitas vezes
passamos por sufocos. Essa confusão de ruídos atrapalha o nosso senso de direção."
A deficiência visual de Xiko não lhe permite perceber se está claro ou escuro. "É a mesma coisa". Ele se recorda do dia em que todos os funcionários do prédio onde
trabalha tiveram que descer vários andares pela escada totalmente às escuras. E lá foi o Xiko, escada abaixo, todo serelepe, com total domínio espacial. "Quem é
que está descendo rápido desse jeito, nessa escuridão e sem medo de cair?", escutou pelo caminho.
Lâmpadas, lanternas e abajures são artigos inúteis para ele. Na residência, a luz só é acesa quando as visitas solicitam. "A minha conta é baixa."
Bem diferente da taxa paga pelo técnico judiciário Marcello Guimarães, de 34 anos, que perdeu a visão no início da adolescência. É instintivo: à noite, quando entra
em casa, o primeiro movimento que faz é o de tatear a parede em busca do interruptor. "É puramente emocional. Eu percebo a presença física da luz, ela preenche o espaço e eu não me sinto sozinho quando a luz está acesa. A escuridão me dá a sensação de vazio. Se não acendo as luzes, é como se o meu lar estivesse abandonado. Não enxergo nem mais, nem menos com a luz. Mas a presença dela é reconfortante."
Já com a luz natural, a relação é de rejeição. "Há vários tipos de cegueira. A minha me rendeu uma fotofobia acentuada. No sol forte, sinto uma espécie de cegueira
branca. Muito desagradável."
Além das lâmpadas acesas, outro companheiro inseparável de Marcello é o rádio de pilha. Tem vários. E ele não gosta nada, nada da pecha de jurássico do velho e bom
radinho. "Até me ofende", reage. "Eu não durmo, não acordo, não tomo banho sem o meu rádio."
Marcello defende a tese de que a linguagem radiofônica é perfeita para quem não enxerga. "A informação via rádio é 100% sonora. Não existe o apelo visual. Tudo o
que eu preciso para entender o que está acontecendo é falado."
Mas, e de onde vem o fetiche pelo modelo à pilha? "Vem da portabilidade. Eu levo pra onde bem entendo. É indispensável para um cego."
Quem também é colecionador de radinhos de pilha é o dublê de músico e analista comercial da Light (!) Leniro Ives, de 53 anos. "Só no Maracanã o radinho de pilha
é tão útil quanto no Instituto Benjamin Constant", compara ,jocoso, referindo-se à escola de educação para deficientes visuais, no Rio, de onde foi aluno.
Mergulhar na escuridão é uma espécie de terapia para Virginia Menezes, 52 anos. Quando criança, era dentro dos armários, debaixo da cama, nos cantos com pouca luz
que ela se abrigava quando precisava se sentir protegida.
"Nem bicho papão me pegava no escuro. Na ausência da luz, eu era a rainha, não tinha para ninguém."
Com o tempo, nada mudou. Em casa, no breu, a mulher de hoje reencontra a fonte que tornava indestrutível a menina de ontem."Quando falta luz eu sinto muita pena
dos que enxergam porque eles ficam muito vulneráveis. É por isso que durante os blecautes as pessoas procuram ficar próximas umas das outras. Para se sentirem protegidas."
Mas se a vida interior encontra paz na escuridão, a falta de energia elétrica perturba o dia-a-dia dessa professora. Cega congênita, ela ressalta que não pode sequer imaginar uma vida com deficiência de fornecimento de luz.
"Não uso a energia com finalidade de iluminar. Mas ela me traz e me leva. O lado prático da vida está atrelado às matrizes energéticas. Dos cegos e dos videntes.
Não tem como voltar atrás."
Virgínia é atraída pelo breu, mas ensina que o universo "visual" de um cego está longe de ser a escuridão total.
"Quem é cego não vive nas trevas, não! se eu enxergasse preto significaria que eu reconheço o preto como cor. E como posso ver uma cor se não enxergo? Minha cegueira
é cheia de luz. E é azul. Um azul infinito."

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