quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

QUEM SÃO OS NOSSOS OLHOS?

Revista Época- "Quem são os nossos olhos?"
Cresce no país o uso de recursos audiovisuais que tornam a arte acessível às pessoas com deficiência - por Lívia Deodato

Marcelo Panico não sabia que tinha nascido com uma má-formação genética na retina. Em 2002, quando tinha 33 anos, o problema se manifestou. Ele ficou cego em três
meses. "Até então, minha maior frustração era nunca ter usado óculos", diz. Afundou na depressão. Pouco tempo depois, soube que sua mulher, Mary, estava grávida.
"Fiquei pior ainda. Achava que um deficiente visual não tinha condições de fazer nada da vida", diz ele. Mas o nascimento de Maria Luiza, de alguma forma, fez Marcelo
se reerguer. Procurou ajuda na Fundação Dorina Nowill para Cegos. Lá, reaprendeu a andar, a tomar banho, a cozinhar, a ler e a exercer, no escuro, a profissão de
advogado. Há pouco mais de um ano descobriu que também poderia voltar a frequentar teatros e cinemas sem que alguém precisasse cochichar em seu ouvido as cenas de
ação ou as trocas de olhares. Bastava um aparelho com fone de ouvido e recepção de ondas de rádio para Marcelo ouvir a audiodescrição das cenas, entre as pausas
dos atores. Na ópera, dias atrás, notou mais detalhes do que quando tinha visão. "Antes eu enxergava, mas não via nada", disse ao fim da ópera Pagliacci, apresentada
há três semanas no Theatro São Pedro, em São Paulo. "Eu não prestava atenção na cortina do palco. Hoje eu sei que ela é vermelha e tem um detalhe em dourado."
Marcelo é um dos brasileiros com algum tipo de deficiência que estão experimentando os recursos de acessibilidade. Esses serviços começam a ser oferecidos, ainda
de forma tímida, nos teatros e cinemas do Brasil. Pelas contas de Lívia Maria Villela de Mello Motta, profissional com doutorado que desde 1999 se dedica à audiodescrição
de espetáculos, já ocorreram no Brasil cerca de 50 eventos com algum tipo de suporte para deficientes. Houve desfile de moda, espetáculos de dança, simpósios e congressos.
No Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, a ser celebrado em 3 de dezembro, será inaugurado no Memorial da América Latina, em São Paulo, o Memorial da Inclusão,
uma exposição permanente com mais de 300 fotos e documentos que contam a luta pelos direitos das pessoas com qualquer deficiência. A exposição terá recursos sonoros
e textos em braille para permitir o acesso de deficientes visuais e para ajudar as pessoas que não são deficientes a perceber, por alguns minutos, como é o mundo
vivido pelos cegos.
Tudo isso, claro, é muito recente. A primeira ópera no país com audiodescrição, Sansão e Dalila, foi apresentada em 2007 no Festival de Manaus, no Amazonas, organizada
pelo Instituto Vivo. De lá para cá, sobretudo no segundo semestre deste ano, a tecnologia para atender pessoas com deficiência tem sido usada com mais frequência.
Os recursos mais comuns no Brasil são audiodescrição, legenda oculta (o mesmo closed caption da TV) e interpretação da linguagem de sinais. Eles já foram usados
nas peças O doente imaginário, de Molière, e Vestido de noiva, de Nélson Rodrigues, entre várias outras, apresentadas no Teatro Vivo, em São Paulo. Agora estão sendo
oferecidos na peça A música segunda, de Marguerite Duras, que fica em cartaz no mesmo teatro até o dia 13 de dezembro.
No mundo da ópera, houve apresentações com legendas e audiodescrição das óperas Cavalleria Rusticana e O barbeiro de Sevilha - cujas últimas apresentações vão ocorrer
na terça-feira e na quinta-feira desta semana, no Theatro São Pedro, de São Paulo.
A companhia carioca Os Inclusos e os Sisos, nascida em 2003 como braço da ONG Escola de Gente, foi pioneira no Brasil em agregar em seus espetáculos todos os recursos
possíveis para atender às necessidades das pessoas com deficiência. Sua peça mais recente, Ninguém mais vai ser bonzinho, apresenta vários tipos de preconceito,
inclusive os que sofre uma garota com síndrome de Down.
Mostras de filmes nacionais e internacionais estão entrando na mesma onda: a quarta edição do Festival de Direitos Humanos na América do Sul, ocorrida no início
do mês em 16 capitais brasileiras, apresentou boa parte de seus filmes com acessibilidade às pessoas com deficiência. A Mostra de Cinema Nacional Legendado & Audiodescrito
completou cinco anos em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro, estendeu sua programação para São Paulo em outubro. Na internet, o YouTube
anunciou recentemente legendas automáticas e o site brasileiro Blindtube tem produzido filmes com audiodescrição.
"As iniciativas estão no começo, mas podemos dizer que neste semestre elas explodiram", diz Marines Cristina Almeida, de 43 anos, que tem deficiência visual e coordena
o grupo de ação cultural da Laramara, Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual. "Desde julho, já fui à ópera, ao cinema e assisti a DVDs em casa,
graças à audiodescrição." Ela conta que o filme mais chocante a que pôde assistir até agora foi Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles. "Há cenas muito fortes."
Marines era uma das nove deficientes que compareceram à sessão de Meu nome não é Johnny no CCBB de São Paulo, exibida no início do mês com legenda oculta e audiodescrição.
A seu lado, estava Rui Antonio do Nascimento, de 49 anos, que perdeu a visão há dois anos por causa do diabetes. Era a primeira vez que ele via um filme audiodescrito.
Nascimento faz uma avaliação peculiar dessa primeira experiência. "É como se fosse um sonho", diz ele. "Os atores falam, o narrador conta e você põe na mente apenas
o que deseja ver."

* Quem precisa de apoio - Número de pessoas com deficiência no Brasil
- 5 milhões de pessoas têm deficiência física
- 2,4 milhões com deficiência intelectual ( esse número provavelmente inclui pessoas com doenças mentais )
- 2 milhões com deficiência visual (cegas e com baixa visão)
- 1,6 milhão com deficiência auditiva

- Fonte: Censo de 2000 do IBGE

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