quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Pequena história da deficiência: do quase-divino ao demasiadamente humano

Pequena história da deficiência: do quase-divino
ao demasiadamente humano

Por: Marcio Tavares d'Amaral


Meu objetivo é fazer uma introdução filosófica, falar sobre a idéia do
que é ser uma pessoa com deficiência hoje e do que foi no passado. Nós
temos a idéia de que ser uma pessoa com deficiência sempre foi, sempre
significou a mesma coisa. No entanto, o sentido negativo e excludente da
palavra "deficiente", em relação às pessoas a quem se aplica essa
designação, tem a ver com uma civilização cujo fundamento é a eficácia,
a capacidade de produzir efeitos, e tudo é medido por essa capacidade.
De modo que a natureza humana e a singularidade individual não têm, a
rigor, nenhum valor; o que vale é uma medida externa que mostra a
quantidade de efeitos que uma pessoa, ou uma instituição, é capaz de
produzir, e se ela não consegue produzir esses efeitos que estão na
média, é então chamada de deficiente, porque vivemos numa civilização da
eficiência, que é a civilização industrial.

Portanto, esse sentido negativo, e freqüentemente pejorativo, da palavra
"deficiente", existe há uns trezentos anos, não mais do que isso. O
prefixo "de" tem um sentido inteiramente negativo, como em derrota,
"perda do caminho", "perda da rota"; deportado, "ter sido mandado embora
do porto"; desestruturado, "não estruturado"; deficiente, "não
eficiente". O prefixo "de”", nesse caso, tem o sentido de "não",
portanto uma negação da própria essência da pessoa como pessoa, porque
ela está sendo avaliada por algo que não é pessoal, que pertence a uma
média e que tem a ver com a produção de efeitos.

Mas nem sempre foi assim. Num passado mais próximo (isto é, em relação
aos começos de nossa civilização), digamos, na Idade Média, o deficiente
era só uma pessoa sagrada. A marca que ele portava era o sinal de
diferença e, nesse sentido, o diferente era assinalado e só podia ser
assinalado por Deus.

Havia algo de sagrado em torno da pessoa deficiente, do cego, por
exemplo, que em geral era tomado como um adivinho exatamente por não ver
as coisas presentes e poder ser sensível às coisas futuras. A pessoa com
deficiência intelectual, que já se chamou de "excepcional", de
"retardado", e mais recentemente deficiente mental, era chamado "o
simples". Ele era a pessoa simples da aldeia - não se tratava do bobo da
corte - e a pessoa simples era a que estava mais próxima de Deus, das
crianças.

Usando apenas esses dois exemplos de deficiência, a visual e a
intelectual, a pessoa com deficiência no passado era tratada
positivamente. A deficiência era o sinal, a marca, uma espécie de
predestinação. Em vez de excluídas, essas pessoas eram protegidas pela
sociedade. Elas eram assinaladas, tinham um lugar e um papel a
representar nessas comunidades. De maneira alguma, elas ficavam de fora.

Assim, analisando as diferentes maneiras de tratar as pessoas com
deficiência e a própria noção de deficiência, que pode ser vista de
forma positiva, bem diferente do modo como é vista hoje, eu me dei conta
de que, se nós pensamos como pessoas que vivem numa civilização que se
define como ocidental e cristã - cuja origem está na Grécia e no Oriente
Médio, na Palestina entre o povo judeu - os pais fundadores de nossa
cultura atual, tanto do lado grego como do lado judaico e depois
cristão, são pessoas com deficiência.

Quem é o fundador da cultura grega para nós? Quando pensamos na cultura
grega, qual é o primeiro nome que nos ocorre, porque não conhecemos
nenhum antes dele? Homero. Homero, que cantou a GuerradeTróia e depois a
viagemde volta de Ulisses em Ilíada e Odisséia. Essas são as duas
narrativas fundadoras da Grécia, da cultura grega, da diferença entre
Ocidente e Oriente. Essa é a narrativa-mãe do Ocidente, mãe da Europa,
portanto nossa avó. Homero era cego e, no entanto, ninguém pensa em se
referir a ele como Homero, o ceguinho, como nos referimos ao ceguinho da
feira, que é um cantador, um repentista, um extraordinário poeta e a
quem, entretanto, nos referimos pela deficiência, não pela poesia.
Homero era um grande poeta, o maior poeta de todos os tempos, assim se
diz, mas o fato de ser cego não é significativo. Era um fato e ponto.

A tragédia de Édipo, por exemplo, que é uma das narrativas
paradigmáticas da nossa cultura: a mãe, o pai e o filho, e o conflito
entre os três, que deu na psicanálise, enfim, em tantas coisas. Em Édipo
Rei, quem é o detetive, quem é que sabe a verdade desde o começo e
aconselha Édipo a não se aprofundar demais na descoberta da verdade
porque ele vai se dar mal? É Tirésias, o adivinho, cego. O que quer
dizer a palavra "adivinhar"? Adivinhar vem do latim divinare, o adivinho
é "aquele que tem o dom divino, o dom da divinação". Ele tem o dom de se
pôr próximo do divino e, portanto, de saber o que os humanos comuns não
sabem. É a deficiência de Tirésias que o faz ser essa pessoa marcada
positivamente e não a pessoa excluída que hoje seria.

Pelo lado judaico, temos a Bíblia, iniciando-se com o Gênesis
e prosseguindo com a narrativa dos homens, dos patriarcas,
reis, profetas, etc. A partir do momento em que a trinca dos
patriarcas - Abraão, Isaac e Jacó - se completa, pode-se dizer
que foi lançada a pedra, um povo passa a existir, um povo
escolhido por Deus, com quem Deus fez uma aliança. Jacó,
por exemplo, não era o filho primogênito de Isaac, e o primogênito
era quem tinha prestígio, quem tinha o mando. Jacó,
então, propôs ao irmão, Esaú, trocar a primogenitura por um
prato de lentilhas. Esaú gostava muito de lentilhas e aceitou
a troca. Assim foi feito e os dois enganaram o pobre Isaac,
que abençoou Jacó pensando que era Esaú em seu leito de
morte. Com isso, Jacó ficou sendo o patriarca e houve muita
confusão e brigas entre os irmãos.

Um dia, Jacó soube que Esaú estava vindo com toda sua família e se
sentiu ameaçado. Resolveu fugir para outra terra levando sua família,
seus escravos, seus rebanhos e suas riquezas. Havia um rio que ele
precisava atravessar e depois estaria em segurança. Jacó levou toda a
sua família e seus bens para o outro lado do rio, ficando por último.

No momento de sua travessia, alguém se interpôs entre ele e o rio,
impedindo-o de prosseguir. Os dois se atracaram numa luta que levou a
noite inteira, sem se resolver em vitória para nenhum deles. Ao
alvorecer, aquele com quem Jacó lutara lhe disse que por ter lutado bem
poderia passar e atravessar o rio. Jacó se recusou a passar simplesmente
e pediu ao outro que ao menos lhe revelasse seu nome. Aquele lhe
respondeu: "Não, meu nome eu não digo." E criou então uma entorse na
perna de Jacó, que o deixou manco pelo resto da vida. Declarou ter
deixado no corpo de Jacó a sua marca, pela qual ele seria sempre
lembrado como "aquele que lutou com Deus", e doravante este será seu
nome, "Israel, aquele que lutou com Deus". Portanto, Jacó, que é o
fundador da outra tradição ocidental, que juntamente com a tradição
grega formou nossa civilização, é um coxo.

Ninguém se lembra dos pais-fundadores de nossa História um como cego e
outro como coxo, entretanto, os dois são pessoas com deficiência. Os
dois são de alguma forma assinalados, tendo sido Jacó diretamente
assinalado por Deus, em sua luta entre o mortal e o imortal, e tido
também seu nome mudado, nome este que conferiu ao povo a que deu origem,
Israel. Esses dois "deficientes", Homero e Jacó, são os pais- fundadores
da cultura que hoje, no seu quase ocaso, trata a pessoa com deficiência
como alguém menos humano, nem por isso mais divino, alguém a ser
excluído, a ser mantido à margem da sociedade, sem cidadania, uma vez
que a diferença é vista como um sinal negativo e não afirmativo.

Essas histórias bonitas servem para comparar a maneira discriminatória
como tratamos as pessoas com deficiência - e que nos obriga a nos reunir
na associação de luta por seus direitos - com a maneira natural com que
a deficiência foi incorporada desde as origens dessa cultura, fundada
mesmo por pessoas (Jacó e Homero) que hoje chamaríamos de deficientes,
essa cultura que no final as expulsaria. Tanto Jacó como Homero não
teriam lugar em nossas escolas, em nossas universidades, sofreriam com
as barreiras arquitetônicas, etc., um não teria escrito a Ilíada e a
Odisséia e o outro não teria sido o pai-fundador da nação judaica e,
portanto, avô do cristianismo.


Marcio Tavares d'Amaral é Presidente do Instituto Brasileiro dos
Direitos da Pessoa com Deficiência - IBDD;

Texto publicado no livro: Inclusão social da pessoa com deficiência:
medidas que fazem a diferença - 1ª edição; Rio de Janeiro - 2008 - IBDD

Um comentário:

  1. Ola, estou ecrevendo minha monografia sobre a questão da deficiência na história, gostaria muito de receber mais informações sobre o tema, gostaria tambêm de adquirir o livro a cima citado, meu email para resposta é: cristianecdsouza@hotmail.com. Obrigada

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